Paulo César Cavelagna
Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino
Mestre em Comércio Exterior pela Ohyo University – EUA / FGV - Fundação Getulio Vargas
Especialista em Direito de Empresas e Direito de Economia pela FGV – Fundação Getúlio Vargas
Professor de Direito Comercial e Direito de Empresa da Universidade José do Rosário Velano – UNIFENAS.
(22 de outubro de 2008)
Em 11 de janeiro de 2003, entrou em vigor a Lei nº 10.406 que instituiu o novo Código Civil Brasileiro, em substituição à Lei nº 3.071 de 1º de janeiro de 1916 (Código Civil de 1916). Para muitos, a nova lei trouxe a modernidade e adequou nossa legislação à nova realidade da sociedade brasileira. Dentro do Direito de Empresa, livro II da parte especial, as inovações, de fato, foram muitas, porém, no livro seguinte, do Direito das Coisas, encontramos no artigo 1447, que abre a Seção IV, Do Penhor Industrial e Mercantil, talvez a maior incoerência praticada, quando se trata especificamente do penhor de sal e bens destinados à exploração das salinas.
Art. 1447. Podem ser objeto de penhor máquinas, aparelhos, materiais, instrumentos, instalados e em funcionamento, com os acessórios ou sem eles; animais, utilizados na indústria; sal e bens destinados à exploração das salinas; produtos de suinocultura, animais destinados à industrialização de carnes e derivados; matérias-primas e produtos industrializados.(o destaque e grifo são meus).
No passado, sal era produto escasso e precioso, vendido a peso de ouro. A salga de alimentos já era um costume bastante difundido no Egito cerca de 4.000 anos antes da era cristã. Entre gregos e romanos chegou a ser usado como moeda de pagamento para suas operações de compra e venda. O exército romano pagava seus soldados com sal, daí a origem da palavra salário. Até hoje um dos principais acessos à Roma, se chama “Via Salaria” pois era por esse caminho que chegavam as caravanas trazendo sal para a capital do império.
Por ser tão valioso o sal foi alvo de muitas disputas, Roma e Cartago entraram em guerra em 250 a.C. pelo domínio da produção e distribuição do sal no Mar Adriático e no Mediterrâneo. Após a vitória, o exército romano, como sinal de soberania, salgou as terras do inimigo para que se tornassem estéreis. Cerca de 110 a.C. o Imperador chinês Han Wu Di iniciou o monopólio do comércio de sal em seu país, transformando a “pirataria de sal” crime sujeito à pena de morte. O monopólio e o peso dos impostos sobre o sal foram estopim de grandes rebeliões. Na França, a elevação das taxas que incidiam sobre o produto desde 1340, chamada gabelle, ajudou a antecipar a Revolução naquele país em 1789. Na Índia em 1930, as taxas abusivas cobradas pelos ingleses, deflagrou o movimento de desobediência liderado por Ghandi.
O registro mais antigo em Portugal relacionado a exploração do sal, data do ano de 959, quando uma doação de terras e marinhas de sal foram feitas por uma condessa a um mosteiro.
No Brasil, como Portugal possuía salinas, a produção e o aproveitamento das salinas naturais eram proibidas, com isto a colônia era obrigada a importar o sal de Portugal. A expansão da atividade pecuária e extrativista, mineração de ouro, aumentaram o consumo de maneira que a coroa já não era mais capaz de atender a demanda, diante disto foi permitida a produção do produto em nosso país, porém, apenas através dos contratadores, representantes da coroa portuguesa. Com a vinda de D. João VI para o Brasil, a extração e o comércio de sal passaram a ser permitidas. As primeiras salinas artificiais começaram a funcionar no Brasil apenas depois da independência, e vestígios do monopólio só se apagaram após a proclamação da República, em 1889.
Mais recentemente, a partir do início do século XX, o sal, além de ser usado como condimento e produto medicinal, passou a ser utilizado como matéria prima essencial para a indústria química e têxtil. O seu emprego hoje, varia desde a produção de cloro, soda cáustica, barrilha, vidro, alumínio, plástico, borracha, celulose e outros produtos indispensáveis à vida moderna. Mesmo com toda esta utilidade, o produto que no passado era vendido a “peso de ouro”, nos dias atuais é vendido por menos que “preço de banana”. Em campanhas de solidariedade que presenciamos com freqüência, onde pagamento para a participação de eventos é fixado em quilos de alimentos, o sal é vedado.
Nossos legisladores ao debaterem e definirem o texto aprovado, talvez não tenham enxergado a realidade atual do sal, um produto essencial, mas sem valor econômico. O que mais intriga, é que este dispositivo, artigo 1447, não possui qualquer correspondente no Código Civil de 1916, portanto se trata de texto original sem antecedente.
Analisando as legislações que regulam a matéria do penhor industrial ou mercantil, nada de relevante encontramos relacionado a sal, apenas o Decreto-lei nº 413 de 09 de janeiro de 1969, que dispõe sobre os títulos de crédito industrial, em seu artigo 20, inciso IV, estabelece o que pode ser objeto de penhor cedular nas condições previstas no diploma legal, relacionando o sal que ainda esteja na salina, assim como as instalações, máquinas, instrumentos, utensílios, animais de trabalho, veículos terrestres e embarcações, quando servirem à exploração da atividade salineira.
Partindo de uma hipótese, onde ainda tenha sido identificada importância relevante, de característica econômica para os dias atuais, que motivem a inclusão de um dispositivo específico para o produto em questão, não justifica tamanho destaque. O Decreto-lei 413 está vigente até a presente data, portanto, a possibilidade de penhora do bem, já goza de amparo legal suficiente. Incluir um artigo em uma lei moderna, que tem como objetivo declarado, adequar a legislação à realidade dos dias atuais é uma distorção gritante, ademais, a regra geral para a constituição do penhor, artigo 1431 do Código Civil, partindo do principal objetivo desta nova legislação, adequá-la à nova realidade, é perfeitamente aplicável caso haja uma necessária constituição de penhora sobre sal para a garantia de débitos ao credor.
Fixar da maneira como está prevista em nosso pergaminho civil, a penhora de sal e bens destinados a exploração de salinas, como se esta atividade mercantil ainda fosse uma das mais importantes de nosso mundo é um verdadeiro disparate com os objetivos declinados para a adoção do novo e moderno Código Civil, retroagindo nosso cenário de atuação ao século XIX, ou incrustando letras mortas em nossa recém criada lei.
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